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Pedras que riem

“No ano da graça de 1..53 do Nosso Senh…r a mando d… Vossa Majestade Dom… o Brag…”. As traças têm fome, consciência histórica não. Roeram os documentos do arquivo e hoje não temos certeza quando é que aquelas pedras foram colocadas ali, formando a lateral da Catedral Velha. O que sabemos é que se trata de uma pavimentação colonial, construída por fortes braços negros a mando da lei de algum monarca do outro lado do oceano. Acredito que nem elas mesmas se lembrem, ou sequer se importem de saber. Pensei isso por acaso, em uma caminhada pelo centro histórico da cidade há alguns anos. Eu, como você leitor, acreditava que pedras que cantam era produto da criatividade de algum compositor amigo de Fagner, mas não. Na realidade, eu nunca escutei elas cantarem mesmo, talvez o façam na madrugada quando não há ninguém escutando. Quem sabe elas acompanhem algum bêbado que entoa um bolero antigo enquanto tropeça até em casa. Certo é que elas conversam e mais do que isso, elas riem.

Catedral Velha, Natal-RN, 2016. Foto do meu acervo pessoal.

Eu vinha certa manhã distraído com meus pensamentos, talvez divagasse sobre algum texto ou o pagamento de uma conta. Dobrei a esquina da igreja e segui me protegendo do sol sob a sombra da parede branca que se projetava sobre o calçamento. Em algum ponto, meu passo manco engalhou numa quina e eu quase dei de cara com o chão, tive que me apoiar com uma mão e segurar os óculos com a outra. Para minha surpresa, escutei baixinho as risadas. Olhei para frente – em direção a praça – ninguém, olhei para trás e para o outro lado da rua, o mesmo resultado. E, com um espanto ainda maior, escutei: – Somos nós que estamos rindo. Assustado perguntei: – Nós quem? A resposta foi: Nós, as pedras. Sem acreditar, olhei para baixo e não vi boca alguma. Outra vez a voz: – Não se preocupe, você não está louco. É que nós sempre rimos das topadas e dessa vez você escutou. Mesmo sem olhos, elas devem ter visto minha expressão de espanto. – Não se assombre, somos pedras muito velhas, viemos de rochas diferentes, mas já estamos juntas tempo suficiente para ter pouco assunto. Então… Uma outra voz atropelou: – Teve uma vez, faz uns 50 anos, mandaram nos cobrir com asfalto, achávamos que seria nosso fim, mas não foi. Um terceira: – É, não foi, ele ruiu, esfarelou, e estamos aqui… A primeira voz retomou a fala: – Por isso, sempre nos divertimos com acontecimentos inusitados. A segunda voz mais uma vez: – É cara, não se preocupa, não rimos só de você. Nós rimos dos magistrados que passam cheios de pompa e pow. Testa no chão. Anos depois passam aqui com o caixão deles e cadê aquela pompa? Deviam ter aprendido a lição cedo com a gente. Lembram de um conde não sei das quantas, muito mais antigo, que quis dar uma de galã para a marquesa e também, pow! Outra voz: – E os casais apaixonados, e os poetas com a cabeça nas nuvens como este aí, e os revolucionários… e os bêbados?! A ampla risada das pedras novamente. Ainda assustado, consegui articular algumas palavras: – Alguém sabe que vocês falam? A voz mais debochada respondeu: – Até deve saber, mas quem vai acreditar? Se quiser, pode dizer para geral. Alias, vai lá dizer a todo mundo, segue teu caminho… sem cair. Mais uma risadaria baixinha. A pedra mais educada ainda pediu desculpas pelos companheiros e se despediu antes de eu ir embora sem saber se aquela conversa tinha sido mesmo real.

Outro dia, dessa vez a noite, fui em um samba numa rua próxima. Desviei o meu caminho algumas quadras só para passar por ali. Dobrando a esquina da Catedral Velha eu olhei com atenção para as pedras coloniais e até ensaiei um: – Oi… alguém ai?! Nenhuma resposta. Também tentei: – Olá… cadê vocês? Um silêncio sacro, próprio para um calçamento de igreja. Aparentemente elas não queriam conversa comigo e eu fui embora me questionando se um dia tinha mesmo conversando com aquelas pedras. Meses depois, eu estava mais um vez próximo dali, mas não tentei contato. Me dirigi ao Instituto Histórico em busca de mais informações sobre aquele calçamento falante. Não encontrei nada substancial, só informações desencontradas, parte delas atravessadas pelas traças. Acabou que nunca mais procurei algo sobre elas, o trabalho e a vida cotidiana me ocuparam, elas sempre vencem. De todo modo, hoje acho que o Maluco Beleza não é tão maluco assim quando diz que aprendeu o segredo da vida com pedras. Eu nunca vi delas que chorem sozinhas, nem que cantem, mas elas devem fazer isso em algum momento. Qual lição sobre a vida eu tirei da conversa com as pedras vizinhas a igreja? Não sei, não sou sábio como Raul. Apenas tive consciência da brevidade humana e da insignificância da maior parte dos nossos projetos.

João Gilberto Saraiva.

Revisão: Mazé

“Pedras que cantam” é uma música de Domiguinhos e Fausto Nilo que ficou famosa na voz de Fagner em 1991.

“Medo da Chuva” é uma canção de Paulo Coelho e Raul Seixas lançada em 1974, no álbum Gita.